Dois desses sobrinhos viveram ao pé de mim, éramos vizinhos, toda a vida que Deus lhes permitiu gozar e que foi longa. O sobrinho homem chamava-se David e encheu a freguesia de filhos. Era um velhote engraçado com uma voz nasalada, por isso lhe pusemos a alcunha de Fanhoso e havia, também, quem o chamasse de "fungadeira" pelo esforço que ele fazia para falar pelo nariz.
O outro sobrinho era ... uma sobrinha e chamava-se Rosa. Nunca casou e tinha horror aos homens, principalmente, pelo seu hábito de fumar. Ela não suportava isso. E nas infindáveis noites de inverno, passadas à roda da lareira, na nossa casa (ela fugia da dela e da solidão que lá imperava) onde ela contava peripécias da sua já longa vida - quando eu nasci ela já ia para lá dos 60 - e uma que ainda recordo era a de um enfermo, já não recordo se era um seu familiar ou não, no seu leito de morte suplicar que lhe trouxessem a caixinha do rapé, pois sentia necessidade de uma pitada.
Ele devia estar a pedir perdão a Deus pelos seus pecados e, em vez disso só pensa no rapé, maldito vício, dizia a Tia Rosa! No século XIX ainda não era um hábito fumar cigarros, como hoje os conhecemos. O tabaco aparecia em charutos (para quem tinha dinheiro para isso) ou preparado para mascar. Eu sempre achei isso um nojo. Mastigar o tabaco e depois cuspir aquela mistura nojenta e castanha, para mim era um verdadeiro nojo.
E havia ainda o costume de fungar rapé que mais não é do que tabaco em pó. Uma pitada era aquilo que se conseguia apanhar unindo os dedos polegar e indicador, mergulhando-os na caixinha do rapé. E depois aproximava-se o pó do nariz e fungava-se, como se faz, hoje, com a cocaína. Havia caixinhas em prata que eram verdadeiras obras de arte, mas não acredito que o tal velhote que estava em vésperas de ir prestar contas ao Criador tivesse uma dessas. Talvez uma mera caixinha de lata e é um pau!
Tia Anica de Loulé
A quem deixaria ela
A caixinha do rapé!